26 de mar. de 2015

Poética, Ritmo, Signo

O artigo de Alice Maria Araújo Ferreira: NOÇÕES FUNDAMENTAIS PARA SE PENSAR A POÉTICA DO TRADUZIR DE MESCHONNIC, publicado na revista: Traduzires, maio de 2012 (Leia mais), cujo trecho publiquei a seguir, aborda todos os aspectos semióticos e dogmáticos que implicam na atividade de tradução do mundo poético, a saber:

Poética

A necessidade de se trabalhar em uma poética impede a separação dos estudos linguísticos dos estudos literários, pois, como diz Meschonnic, “poética implica literatura” (1999, p. 3). A poética só se desenvolve no conjunto da teoria, da literatura e da linguagem. Em tradução, a poética é experimental: primeiro, porque a tradução é uma atividade; segundo, porque é uma crítica, enquanto “reconhecimento das estratégias e de estratégia contra a manutenção da ordem constituída pelos dogmatismos fenomenológicos e semióticos” (1999, p. 3). 

O segundo motivo é que a poética distingue os problemas filológicos (saber da língua) dos problemas propriamente poéticos, estudo do texto, e permite situar a tradução em uma teoria do sujeito e do social. A poética não é propriamente o estudo das obras literárias, mas o estudo do valor de uma obra. A poética é uma política do ritmo, e a política do ritmo, uma política do sujeito. A tradução é, para Meschonnic, a “melhor testemunha da implicação recíproca entre a historicidade e a especificidade das formas da linguagem como formas de vida. Com sua ética e sua política” (1999, p. 4). Quando fala em política da tradução, não se trata de política editorial, mesma se esta também tenha que ser pensada, mas da relação identidade e alteridade, sem opô-las, ao contrário, reconhecendo a interação entre elas, já que só temos identidade se há alteridade. 

A poética recusa o cientificismo, não é, de modo algum, uma ciência, nem mesmo uma ciência experimental. A poética é uma teoria crítica, uma teoria de conjunto da linguagem, da história, do sujeito e da sociedade porque o discurso se pensa a partir de todas essas dimensões. Meschonnic concebe teoria e crítica como indissociáveis e situadas no plano histórico e ideológico. A crítica é o próprio exercício do pensamento, se dá no e pelo sujeito, o que vai contra a transcendência do observador, que, à procura da verdade, acaba se excluindo do processo de objetivação que ele mesmo iniciou. O sujeito da teoria crítica é uma instância de avaliação, já que ela se define, ao mesmo tempo, como busca das historicidades, dos funcionamentos, dos interesses e dos desafios de um lado, e ela constrói e situa seus próprios valores. Não se trata de uma busca da verdade, mas do sentido. Não é saber o que é o sentido, mas como, a partir de que e para onde se faz o sentido. 

Meschonnic elabora sua poética do traduzir em torno de um programa teórico baseado no ritmo como organização da historicidade do texto. 

Ritmo 

Noção que já recebeu diferentes definições ao longo do tempo. Na antiguidade, Platão definia o ritmo como a ordem do movimento e distinguia ritmo de harmonia. A organização desse movimento era operada formalmente com alternâncias entre a percepção auditiva e/ou visual, ou seja, pela alternância dinâmica dos impulsos e das pausas. No sséculo XVIII, Diderot acrescenta à definição formal da antiguidade, um aspecto sensível: 

Você me pergunta, o que é o ritmo? É uma escolha particular de expressões, é uma certa distribuição de sílabas longas ou breves, duras ou suaves, surdas ou sonoras, leves ou pesadas, lentas ou rápidas, de lamento ou alegres, ou um encadeamento de pequenas onomatopeias análogas às ideias que temos e que nos preocupam, às sensações que sentimos e que queremos excitar, aos fenômenos que procuramos revelar, os acidentes, às paixões que vivemos e os gritos do animal que elas arrancariam, à natureza, ao caráter, ao movimento das ações que nos propomos revelar; e esta arte não é feita de convenções tanto quanto a luz e as cores do arco-íris; não se aprende, não se comunica, apenas pode se aperfeiçoar. Inspira-se de um gosto natural, da mobilidade da alma, da sensibilidade. É a própria imagem da alma (DIDEROT, Salon de 1767, apud BORDAS, 2003, p. 8, trad. nossa). 

Definição que completa a concepção formal da Antiguidade e do Classicismo, com certa irracionalidade, eliminando sua compreensão analítica. Ele já anuncia que é o ritmo que organiza o sentido como manifestação do sentir da alma. Para Benveniste (1994), o ritmo é um objeto evidente na poesia e na música e se percebe como uma “alternância de marcas (tempo forte, tempo fraco) do mesmo e do diferente, de vazio e de cheio, de longas e de breves, como um recorte, por intervalos, do som sobre fundo silencioso” (BENVENISTE, 1994, p. 335). Essa concepção recortada pode levar a esquecer que o ritmo é fundamentalmente um movimento, esquecimento provocado pela métrica que alimenta uma noção falsa de unidades (verso, frase ou estrofes). 

Avançando nos estudo de Benveniste, Meschonnic (1982, p. 69-70) nos ensina a pensar o ritmo como uma estrutura, um nível que é a própria organização do sentido no discurso: 

A partir de Benveniste, o ritmo pode não ser mais uma subcategoria da forma. É uma organização (disposição, configuração) de um conjunto. Se o ritmo está na linguagem, em um discurso, ele é uma organização (disposição, configuração) do discurso. E como o discurso não é separável do seu sentido, o ritmo é inseparável do sentido desse discurso. O ritmo é a organização do sentido no discurso (MESCHONNIC, 1982, p. 70, trad. nossa). 

O ritmo descobre o sentido do enunciado para deixar o sujeito aparecer. Assim, para Meschonnic, o ritmo é uma organização da fala na linguagem por um sujeito, e de um sujeito por sua linguagem. Em Critique du rythme: anthropologie historique du langage, Meschonnic apresenta o ritmo “como a organização do movimento na palavra, a organização de um discurso por um sujeito e de um sujeito por seu discurso” (1982, p. 61-62). O ritmo é assim visto como uma organização da subjetividade e da especificidade de um discurso e não é separável do sentido, já que ele o organiza. A organização das marcas pelas quais os significantes linguísticos e extralinguísticos produzem uma semântica específica, distinta do sentido lexical. Estas marcas situam-se em todos os níveis: acentos, prosódicos, lexicais, sintáticos. Elas constituem junto um paradigma e um sintagma e neutralizam a noção de nível. O ritmo está no verso e na prosa. Ele está nos acentos, nos fonemas, na entonação, nas intensidades, nas construções de frases... 

Meschonnic combate todo e qualquer dualismo em tradução: língua de partida/língua de chegada; significante/significado; forma/conteúdo; letra/espírito;... Ele critica assim a noção de signo que se opõe à noção de sujeito. Pois o ritmo não é mais som, não é mais forma, mas um sujeito, uma historicidade. E traduzindo o discurso e não a língua, traduzimos um sujeito inscrito no seu discurso e transformado por ele, ou seja, uma historicidade. O reconhecimento do ritmo como organização do sentido pelo sujeito implica uma crítica ao signo linguístico. Pois o ritmo, sendo uma organização contínua na linguagem, evidencia a estrutura descontínua do signo.

Signo 

É uma noção da antropologia dual e se opõe à antropologia do sujeito e do ritmo, que é histórica (MESCHONNIC, 1982, p.  65). É a partir do signo que uma série de dualismos se produziram. Em linguística, a dualidade significado/significante é o modelo de outras dualidades; em antropologia, a oposição corpo/alma, natureza/cultura; em filosofia, palavras/coisas, origem/convenção; em ciências sociais, indivíduo/sociedade; em política, maioridade/minoridade. Contra essa descontinuidade, Meschonnic opõe um pensamento do contínuo que implica o múltiplo e o plural. O pensamento sobre a linguagem conheceu no século XX a passagem da língua ao discurso. Esta noção tem efeitos diretos no traduzir. “O discurso supõe um sujeito, inscrito prosódica e ritmicamente na linguagem, sua oralidade, sua física” (MESCHONNIC, 1999, p. 16).


Referências bibliográficas:

BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1994 [1974]. 2 tomos.

BORDAS, E. Le rythme de la prose. Semen: rythme de la prose, nº 16, 2003 [online]. 1º maio 2007. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2008. 

DESSONS, Gérard; MESCHONNIC, Henri. Traité du rythme: des vers et des proses. Paris: Dunod, 1998. 


FERREIRA, Alice Maria de Araújo. A linguagem, a subjetividade e a intersubjetividade. Temporis[ação]. v. 1, n. 8, Cidade de Goiás, UEG – Unidade Cora Coralina, 2006. p. 105-120. 


MAINGUENEAU, Dominique; CHARADEAU, Patrick. Dicionário de análise de discurso. Trad. de Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2006. 


MESCHONNIC, Henri. Critique du rythme: anthropologie historique du langage. Lagrasse: Verdier, 1982. ______. Poétique du traduire. Paris: Verdier, 1999.

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