No texto que se apresenta nas páginas a seguir, Theodor Müller-Alfeld apresenta um histórico da grafia e do que poderíamos chamar de os primórdios da ilustração, tal como a conhecemos hoje, através do qual relata a sensibilidade artística do escrivão e do que se pode esperar para o ofício dos ilustradores, apesar do avanço da tecnologia. A esta sensibilidade artística, muitas vezes, também se integra a litografia [veja mais detalhes em alemão] / [veja mais detalhes em português], uma vez que pretende reproduzir determinado desenho ilustrativo, aliado à fotografia.
As iniciais, ou letras capitulares ainda hoje exercem grande fascínio sobre algumas pessoas, as quais podem ser comparadas às novas forças criativas citadas por Müller-Alfeld ao final do seu texto, que tem a missão de desenvolver belas imagens, capazes de cativar os leitores aficionados por esta arte decorativa, até o fim dos tempos.
Não vi a necessidade de fazer a transcrição do texto, uma vez que foi impresso na grafia latina, que é algo corrente no nosso dia a dia, por isso ela vem acompanhada apenas e tão somente da respectiva tradução, para que possa ser lida também por aqueles que não dominam o conhecimento da língua alemã.
[Fonte da imagem:
Ueber Land und Meer: Deutsche Illustrierte Zeitung. Stuttgart,
Deutsche Verlags-Anstalt, 1902, Vol. 34, Nº 6]
Ueber Land und Meer: Deutsche Illustrierte Zeitung. Stuttgart,
Deutsche Verlags-Anstalt, 1902, Vol. 34, Nº 6]
Ueber Land und Meer: Deutsche Illustrierte Zeitung.
(Imagem encontrada na Internet)
TRADUÇÃO:
Iniciais[1]
Texto: Theodor
Müller-Alfeld/Fotos: Hans Retzlaff
Em
toda e qualquer biblioteca de principados e mosteiros elas fazem parte dos
tesouros mais preciosos, e em uma das mais famosas, que devido ao seu efeito
arquitetônico é visitada anualmente por incontáveis milhares de visitantes, a
Biblioteca da Fundação Melk, às margens do Danúbio, há pouco tempo vi um grande
número delas, bem protegidas atrás do vidro: belos manuscritos bíblicos antigos
e magníficos livros de oração, fólios de couro de porco e documentos selados por
meio de lacre. Uma forte magia emana deles – dos nobres pergaminhos e papiros,
das antigas e indecifráveis escrituras e do espírito de tampos idos, que
igualmente foi preservado entre eles.
Mas
na maioria das vezes nos cativam estes manuscritos que são executados por meio
da arte. Quem tiver alguma vez a sorte de poder folear um volume destes com vagar(?),
terá a sensação de estar vivendo uma grande experiência estética. Como parecem
sóbrias as letras retas, frias e precisas impressas nos livros do nosso tempo! E
mesmo que se possa afirmar das escritas modernas, que a seu modo são belas, é
evidente que a sua aplicação é meramente um meio para atingir um fim; na
maneira objetiva como são justapostas é que fica explicito que elas nada mais
são que um meio de fixação e de compartilhamento do pensamento. Nos antigos
manuscritos, ao contrário, a escrita era elevada para expressar um fim em si
mesma. Sob as mãos do escrivão de sensibilidade artística, ela renasce a fim de
ter vida própria. Cada página tornava-se uma obra de arte, criada muitas vezes
por si mesma, devido ao seu efeito artístico, fazendo com que a carga do
pensamento tenha que se sujeitar a ser mera coadjuvante.
Uma
página, cujos manuscritos e livros desses tempos idos são reproduzidos por
esses escritores, geralmente é dominada pelas iniciais; trata-se de letras
iniciais de grande formato, que se sobressaem às letras do texto, ou se
destacam dele, às quais se acrescentam ricos ornamentos e floreios, dando um
destaque significativo ao panorama geral da página. Elas atuam como aberturas
festivas a cada início de livro e de capítulo, e graças à sua função de
abertura, elas recebem o nome de iniciais/[capitulares], derivadas do latim “initium”, que significa o mesmo que
início. Começa-se a encontrar as iniciais em premissas tímidas, já na era
arcaica tardia; naquele tempo, em geral, contentava-se em escrever um caractere,
de forma que fosse apenas uma fonte um pouco maior e, às vezes, até como um
enfoque ornamentativo, com floreios modestos, como se fosse um prelúdio.
No
desenvolvimento que se seguiu até a efetiva inicial, não ocorreram mais
interrupções nos séculos que se seguiram. O florescimento real da arte das
iniciais começou apenas, quando, no século 8, nas ilhas britânicas, na igreja irlandesa,
se desenvolveu uma caligrafia única. A sua contribuição mais importante para a
história da grafia é o desenvolvimento do design das iniciais/[capitulares] por
meio de variados ornamentos em forma de fitas, com o uso simbólico de formatos
de animais e de plantas, as quais eram inseridas nos vazios das iniciais. Ao se
apreciar esta arte das iniciais de modo contemplativo, não é difícil imaginar
de que forma se chegou ao desenvolvimento dessas peculiares artes decorativas
dos livros.
Naquela
época ainda não se conhecia a impressão do livro como tal; Johannes
Gensfleisch, conhecido como Guttenberg, faria sua descoberta inovadora de
impressão dos livros, por meio do uso de tipos móveis fundidos, somente sete ou
oito séculos mais tarde. Cada bíblia, cada sacramentário, cada lecionário [p. 285]
tinha que, até então, ser produzido à mão, após anos exaustivos de trabalho. No
início, o destaque dos caracteres, por meio de aumento e de adorno, tinha a
finalidade prática e exclusiva de indicar melhor ao padre leitor o início de
novos capítulos e parágrafos. Certo dia, um monge absorto em seu recinto, teve
a ideia de ampliar o jogo fantasioso dos floreios e ornamentos, a serem
desenhados com o auxilio de uma tinta negra obtida a partir da mistura de fuligem
e borracha, adicionando-lhe cores. Ele optou pelo vermelho obtido da mistura do
cinábrio[2]
com a albumina[3], a borracha
ou a cola. Agora, repentinamente, havia mais opções para decorar as
iniciais/[capitulares]. Podia-se complementar as linhas negras com o uso das
vermelhas, aumentando cada vez mais as iniciais/[capitulares], até que
finalmente dessem sua marca à página toda e eventualmente circundassem todo o
texto desta página com seu admirável enquadramento artístico. Originalmente,
dava-se a estas artes decorativas o nome de miniaturas, do latim “minium”, dado ao cinábrio, de onde
deriva o “chumbo vermelho” utilizado ainda nos dias de hoje. Não demorou muito,
para que se adicionasse outras cores, fazendo com que se chegasse a desenhos
cada vez mais magníficos, no que diz respeito aos caracteres decorativos. Nas
vitrines dos museus e das grandes bibliotecas guardam-se livros, cujas pinturas
decorativas coloridas e até pintadas a ouro representam tesouros incalculáveis.
Ao lado de iniciais decorativas, frequentemente, elas mostram, junto às
iniciais/[capitulares], a forma inteligente e, muitas vezes, fantasiosa de
figuras relacionadas e de toda uma representação baseada no novo e no velho
testamentos, que se referem ao conteúdo de cada capítulo e que podem ser vistas
como o pontapé inicial da ilustração propriamente dita do livro. Elas devem sua
origem, nem tanto ao desejo de ilustrar por meio de imagens, o que era relatado
pelo texto, mas muito mais ao propósito de decorar o livro de forma solene e
sagrada. A caligrafia dos monges irlandeses, pouco a pouco, tornou-se um
exemplo para todo o ocidente cristão, não só devido à alegria provocada pelo
jogo fantasioso da pena e do pincel, mas por fim, mas não menos importante,
devido à ocorrência de um primeiro aprofundamento do monasticismo nórdico no
pictórico, provocado por esse jogo das linhas, das figuras e das miniaturas,
que quase se assemelhava à devoção à imagem plástica diante do altar. A este significado
profundo correspondiam as crescentes exigências, feitas em relação aos desenhos
da bíblia e dos missais manuscritos. Em todo o Império Franco e na Alemanha
Central, para onde os monges irlandeses e anglo-saxões haviam levado não só a
primeira reforma cristã, mas também a arte de escrever, surgiam nos mosteiros
as escolas da escrita, dos quais as de Fulda[4]
e as de Reichenau[5] eram as
mais famosas. Na era otoniana elas foram determinantes para a concepção de toda
a igreja e da própria literatura. Além dos Scriptores
[escritores] que, inicialmente, eram os que desenhavam as iniciais/[capitulares]
e as miniaturas; agora havia também entre os monges os ilustradores especiais,
os pictores [pintores] ou Illuminatores [iluminadores], que, em
trabalho conjunto com os escritores, assumiam a ilustração das páginas
escritas. Depois da descoberta da técnica de impressão do livro, a profissão do
ilustrador continuava sendo uma profissão para cidadãos regulares, que ainda
existiu por muito tempo, pois nos livros impressos também não se quis abrir mão
da arte decorativa colorida, fazendo com que tivessem que pintar as
iniciais/[capitulares] das miniaturas e dos desenhos laterais sobre as folhas
de papel dos produtos de impressão seculares que saíam das impressoras, da mesma forma como
os monges astutos o faziam sobre os pergaminhos da bíblia e das Psalterias[6],
nos tempos que antecederam a Gutenberg. O futuro das miniaturas, no entanto, neste
momento, estavam condenados à extinção, a partir do instante em que os
impressores tiveram a ideia de imprimir as iniciais/[capitulares] ao mesmo
tempo que imprimiam o texto, inicialmente por meio do uso de xilogravuras e,
mais tarde, do uso de carimbos de metal, para que depois de impressas, só precisassem
ser coloridas. – A produção técnica/mecanizada das ilustrações dos livros,
assim como a introdução da técnica nas demais áreas, que também pertenciam aos
artesãos, – trouxe como consequência o declínio dessa atividade, que perdura
até os dias atuais, a única coisa boa é que ultimamente estão entrando em cena
cada vez mais novas forças criativas, as quais, por um lado, tem como missão
desenvolver belas impressões, e por outro visam a manutenção da caligrafia e da
produção artística de livros, ocasionalmente, até através do uso de iniciais/[capitulares]
dos tempos modernos.
(Tradução: MSc. Helena Remina Richlin)
[1]
Notas do texto: Na imagem superior esquerda: a
inicial/[capitular] “D” de um Sacramentário de Fulda de ca. de 975 (Biblioteca
Universitária de Göttingen); imagem superior direita: a inicial/[capitular] “F”
do Códice Ragymdrudis de ca. de 700 da Borgonha (tesouro da Catedral de Fulda);
na imagem inferior esquerda: a inicial/[capitular] “J” da introdução
sacramental de Fulda, do Sacramentário de Fulda de ca. de 975; na imagem
inferior direita: inicio do Evangelho de Lucas, de um Evangelho de Fulda de ca.
de 830 (Biblioteca Universitária de Erlangen). Imagens da página 285 –
Evangelho da Abdessa Hitda von Meschede de Colônia, início do século XI;
primeira página: “Liber Generationis”
[Família], com a inicial “L” (Biblioteca do Estado de Darmstadt); inicial “P”,
da página do “Paternoster” [Pai
Nosso] no Sacramentário de Fulda de ca. de 975 (Biblioteca Universitária de
Göttingen); inicial “V”, escrita em ouro, sobre terra roxa, letra
inicial/[capitular] do prefácio do Sacramentário de Fulda de ca. de 975.
[2] Nota de tradução: Cinábrio, cinabre ou cinabarita (sulfeto de mercúrio (II) (HgS), vermelhão nativo) é o nome usado para
o sulfeto de mercúrio (II) (HgS), o minério de mercúrio comum. O nome vem do grego, usado por Teofrasto e provavelmente foi aplicado a muitas
substâncias diferentes. Acreditam que a palavra vem do persa زینجیفرح (zinjifrah), originalmente
significando "sangue perdido de dragão”. O Cinábrio foi extraído pelo Império Romano por seu conteúdo e é o principal
minério de mercúrio ao longo dos séculos e, geralmente, é encontrado em uma forma massiva, granular ou terrosa, é de cor
vermelha viva a cor de tijolo. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cin%C3%A1brio. Acesso em: Abr. 2015).
[3] N.T.: Albumina (latim:
albus, branco) refere-se de forma
genérica a qualquer proteína que é solúvel em água, moderadamente solúvel em
soluções salinas, e sofre desnaturação com o calor. Proteínas desta classe são
encontradas no plasma, e diferem das outras proteínas plasmáticas porque não
são glicosiladas. Substâncias que contêm albuminas, como a clara do ovo, são
designadas por albuminoides. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Albumina. Acesso em: Abr. 2015.
[4] N.T.: Fulda é uma cidade localizada no estado do Hesse, na Alemanha. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fulda.
Acesso em: Abr. 2015.
[5] N.T.: A ilha de
Reichenau está localizada no Lago Constança, no sul da Alemanha. Está situada entre o Gnadensee e Untersee e unida a terra firme por uma passagem
de 400 metros. A ilha tem no seu solo um mosteiro beneditino, fundado em 724 e
secularizado em 1799, que foi o principal foco artístico e
literário durante os
séculos IX-XI. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ilha_de_Reichenau.
Acesso em: Abr. 2015.
As imagens a seguir foram encontradas através de pesquisas realizadas no Google, bem como em capítulos iniciais de alguns livros de acervo e ilustram um pouco do que o autor expõe no texto acima:
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